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ITÁLIA - UM SARCÓFAGO EM SARCONI




Ainda de carro continuamos a percorrer as estradas e suas incessantes curvas, o simpático Panda italiano parecia mais um elefante africano e nos levou, junto com toda a estrutura de acampamento, à praias paradisíacas e cidades de pedras ao sul da Itália. Por fim (que seria só o começo) chegamos ao nosso pouso em Sarconi. A partir de então quase todos os dias faríamos pequenas viagens à cidades próximas para nos apresentar e voltaríamos para dormir nessa casa. Seguindo a particularidade arquitetônica da região da Basilicata, este estranho lar parece ter sido diretamente cavado na pedra, no entanto a estrutura com suas portas e janelas originais de 1850 não justifica seu exotismo, a dona, uma figura única, é que se responsabiliza pela decoração que pelo mundo aprende e do mundo traz. Entre antiguidades, madeiras seculares e um amontoado de coisas a cidade ganhou dos brasileiros o apelido de sarcófago.

É evidente que nas viagens pela mundo adiquirimos experiências e lidamos com desafios que nos fazem crescer, no entanto as ocasiões e por onde está o crescimento nunca nos é evidente. Os lugares por onde nos apresentamos nos solicitam muito mais do que ganho aeróbico, elasticidade ou destreza de movimentos. Contextos inesperados nos fazem aprimorar o improviso, as situações inadequadas permitem exercitar a maleabilidade e os ambientes inóspitos rendem cara de pau. Cenários que exigem um estado de prontidão, referência tão valiosa oferecida pelas festas populares, o estar pronto a transformar, rir e se surpreender com as mais estranhas circunstâncias.

Uma delas foi um festival de danças folclóricas. Entre as delicadas tailandezas e os vigorosos malawis, lá estávamos nós mais uma vez deslocadas. Seja pela falta de um figurino típico ou pela sonoridade dos típicos ritmos que dançamos, nossas apresentações, feitas em eventos que dividem a dança entre dois gêneros, são sempre introduzidas por uma fala que ou justifica nossos passos tradicionais ou nosso caráter contemporâneo. Se é no meio do caminho onde o diabo mora é no inferno que por hora bailamos, a "dança folclórica" e a "dança contemporânea" delimitam regras que já não contemplam mais o nosso trabalho. Pouco importa gênero e cor, a mera reprodução de movimentos antigos pode ser tão desinteressante quanto a impessoalidade de um gesto criado naquele instante. Em contraposição, o entusiasmo de uma improvisação contemporânea pode deixá-la tão sedutora quanto uma coreografia tradicional feita com vitalidade. As tradicionais roupagens coloridas podem não esconder o prazer do dançarino, assim como o corpo híbrido pode transmitir a sensibilidade da criação atual.

Se a dança revela a cultura de um povo é o modo como o gesto, a respiração e o olhar reverberam no corpo que fará dela uma arte, Godard já nos alertou, "cultura é regra, arte é exceção", e se a vitalidade é condição humana façamos arte para fugir à regra e sejamos verdadeiramente vivos para não acabarmos mumificados em sarcófagos.

ITALIA - Entre Brincantes, Brigantes e Brigadeiros



Entre as tantas confusões propiciadas pela babel linguísitica deixada pelos nossos antepassados nunca seriamos capazes de imaginar a criatividade e as conexões que ela nos daria!

A primeira apresentação da aula espetáculo Do Papo ao Passo na Italia se deu entre i
taliano e espanhol traduzido. E tudo entendido... Mas de todas as palavras uma delas não tinha equivalente que traduzisse o seu sentido maior: brincadeira. E por consequência: brincante. Assim como já tinha nos alertado Johan Huizinga em seu livro Homo Ludens, muitas línguas tem a palavra "jogar" que serve para designar tantas coisas inclusive o estar em cena, mas são poucas que tem a relíquia do "brincar".

Tentamos então dançar e traçar exemplos que levassem a imaginação italiana a uma imagem de brincante.

Alguns dias antes tínhamos prometido a nossa querida Vita, ragazza que tão cuidadosamente nos recebeu, alimentou, e carregou de um canto ao outro, que faríamos um doce muito gostoso: brigadeiro!
E foi ai que a babel começou...
De repente, na imaginação italiano brincante virou brigadeiro, equivalente aos brigantes que nos tempos de unificação da Italia eram a resisência do sul que fazia frente aos piemonteses que desciam do norte para transformar a Italia na bota que hoje conhecemos. Depois de tantas risadas esclarecemos a confusão das palavras mas acabamos achando lógica nos sentidos. A brincadeira hoje não deixa de ser uma resistência. Frente ao tempo, frente ao cotidiano. Huizinga nos ensinou e sempre terminamos o Do Papo ao Passo dizendo que as brincadeiras e os brincantes nos são referência de uma estética sim, mas do que eles nos servem de maior referência é quanto a sua maneira de relacionar com o mundo. Uma maneira que exige uma inteireza para aprender o que existe fora de si mas conhecendo muito bem o que se tem dentro para poder transformar e devolver ao mundo de uma nova maneira, mais criativa, mais inteira.

Incrível foi descobrirmos na Italia que talvez a melhor tradução para o brincante seja algo entre o doce e o resistente.